MUSHISHI: O sobrenatural que habita entre o homem e a natureza

Homem de casaco, roupas escuras e camisa e cabelo branco segurando uma maleta enquanto fuma um cigarro. O fundo da imagem e vermelho e ele parece estar em um local com vento.

Publicado inicialmente no Japão por Yuki Urushibara entre os anos 2000 e 2002, e compilado no Brasil em 5 volumes pela New Pop, o mangá acompanha Ginko, um Mushishi, indivíduos se dedicam a catalogar e solucionar problemas relacionados aos Mushis, criaturas sobrenaturais que vez ou outra interagem com seres humanos.

Conforme definidos logo nas primeiras páginas da obra, os Mushis são organismos primordiais diferentes em forma e comportamento de todos os animais ou plantas já conhecidas, em resumo, são as criaturas mais próximas da vida em si.

Estruturadas em capítulos episódicos, onde acompanhamos Ginko em sua viagem por vilas e comunidades assoladas por fenômenos envolvendo as estranhas criaturas visíveis apenas para algumas pessoas. Cada história traz consigo um mushi diferente, acompanhado de um núcleo humano que precisa lidar não somente com as consequências de entrar em contato com entidades que vão além de sua compreensão, mas também com conflitos puramente mundanos. Seja sobre uma mãe que não entende a obrigação de amar um filho ou um filho que luta diariamente para manter vivas as memórias da mãe que, aos poucos, se esquece até mesmo do que fez ontem, o trabalho de Urushibara brilha, ao menos na minha percepção, quando se debruça sutilmente em questões relacionadas a forma em que nos relacionamos com as pessoas e os ambientes que nos cercam

De forma brilhante, a autora equilibra em uma ponta personagens que têm suas vidas e relacionamentos abalados por fenômenos incompreensíveis e, na outra, os responsáveis indiferentes aos estragos que causam, focados apenas em seguir seu ciclo existencial e retornar ao rio de luz de onde surgiram.

Volumes do mangá Mushishi publicados pela New Pop dispostos sobre uma mesa. O Volume 1 está em pé enquanto os outros 4 estão empilhados ao lado.
Imagem de reprodução


O Fantástico que habita no simples:

Após apresentar uma sinopse básica do que se trata a história, proponho nesse texto uma reflexão particular do que pensei enquanto lia, ao invés de resumir capítulo por capítulo os acontecimentos espalhados nos 5 volumes da edição nacional. Com isso em mente, surgem duas possibilidades de sentido a serem extraídas das páginas do mangá: a relação do homem com a natureza e a beleza que nos rodeia silenciosamente.

Ao compreender a cultura como tudo aquilo que criamos, consumimos e modificamos enquanto construímos nossa identidade, o meio em que estamos inseridos se torna indispensável para a consolidação desse processo. O misticismo que permeia a densidade das florestas e a profundidade dos rios muitas vezes surge como explicação para os acontecimentos inexplicáveis, mais comuns antes do bombardeio de informações que nasce com a internet. Conforme o comentado pela autora sobre a inspiração para o capítulo “O fio dos céus” que trata do desaparecimento de uma jovem:

“Eu pensei nesse capítulo depois que a minha vó contou a história de pessoas que desapareceram e voltaram em cima de uma rocha. Existem outras histórias parecidas, e a maioria delas diz que as pessoas são encontradas nas árvores ou sobre os telhados. Isso é tido como obra de duendes das montanhas ou um travessuras dos deuses”

Explicações como essa, que buscam utilizar crenças populares para justificar fatos ainda não desvendados, não devem ser encaradas como simplificações ou demonstrações de conhecimentos de '“menor valor”, o que seria cair em uma lógica preconceituosa de superioridade cultural. Pelo contrário, demonstram um saber rico em identidade, expressando em sua essência os valores e crenças transmitidas entre gerações no processo de formação identitária de um povo ou etnia.

Explorando as lacunas existentes e bebendo de mitos e conhecimentos da sociedade japonesa, Urushibara estrutura sua narrativa ao estabelecer tramas em torno de eventos sobrenaturais, mas que podem ser encarados como problemas cotidianos, apresentando seus mushis, distintos em formas e hábitos particulares, como explicação para a queda de raios, a ausência de chuvas, a perda da memória ou a dificuldade para dormir.

Com isso, nasce uma mitologia própria calcada em saberes populares e na ideia da natureza na totalidade. Esse segundo elemento, independente das vontades e caprichos humanos, origina-se de um rio de luz que percorre a terra e decididos a cumprir o papel que significa sua existência.

Cheios de beleza, tal qual a fauna que já conhecemos, se manifestam como jardins que florescem no inverno, cerejeiras eternas, pântanos vivos e revoadas de seres que se abrigam em conchas e soam como pássaros em plena migração, ou, até mesmo, a escuridão encarnada cuja função é consumir o que se mantém próximo por tempo demais.

Essas entidades revelam, portanto, uma verdade que a vida cotidiana pautada na produtividade nos força a esquecer: existir basta. Reside beleza no simples ato de ser, de contemplar o ambiente que nos cerca, tal qual as páginas do mangá que comento e que me serviu de escape em dias de turbulência, me lembrando que não nos cabe o controle e o conhecimento do que reside na fronteira da existência e, assim como o sol nasce e se põe na montanha, seja para o bem ou para o mal, amanhã sempre será um novo dia. Nas palavras da autora:

“Uma coisa que está na fronteira da existência… Isso é muito legal. Também é muito gostoso quando misturamos o arroz o com acompanhamento. A montanha e a praia possuem paisagens ricas, as fronteiras entre a tarde e a noite e entre a noite e a manhã são bonitas. Os mushis também moram na fronteira. Como a mistura entre arroz e praia… Eu queria escrever uma história desse tipo”

Por fim, é preciso ter em mente sob nossos pés, ou dentro de nossos corpos, corre um rio de luz chamado vida.

Fontes: O texto utilizou como fontes imagens de acervo pessoal, bem como a reprodução de imagens promocionais e de divulgação. Os trechos reproduzidos foram retiradas as edições de Mushishi publicadas no Brasil pela Editora New Pop e as frases são creditadas a autora Yuki Urushibara.

Samuel Lima

Escrevo de tudo um pouco aqui na Otadesu, sempre com o objetivo de informar com qualidade. instagram bluesky

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