"Lúcifer e o Martelo" e a criança que interpreta o papel de adulto

No centro da imagem há uma garota com uniforme escolar e uma capa vermelha, ela em com as mãos estendidas e punhos fechados, além de um olhar decidido. Do lado direito há um jovem de cabelos e jaqueta preta e do esquerdo outro de cabelo verde, óculos e blusa laranja



Entre os anos de 2005 e 2010 Satoshi Mizukami, autor de Sengoku Youko e Spirit Circle, lançava na revista japonesa Young King Ours o mangá Hoshi no Samidare, ou Lúcifer e o Martelo como foi adaptado para o português. Ao longo dos 10 volumes de sua história, Mizukami se apropria de elementos tradicionais dos shounen para construir uma narrativa que se baseia no emocional de suas personagens, seus dramas e jornadas de crescimento.     

A demografia do mangá entrega as intenções do autor. Publicado como um seinen, classificação destinada a jovens adultos do gênero masculino, Lúcifer e o Martelo utiliza a roupagem de histórias infantojuvenis não somente para atrair leitores, mas para pega-los com a guarda baixa ao abordar temáticas sensíveis ligadas ao processo de crescer.

A Lúcifer de saias e fábula de destruição mundial: 

Yuuhi Amamia é um estudante universitário comum, afastado da família e dono de um ego que só não é maior do que a própria solidão. O jovem vive sua vida tranquilamente até a inesperada visita de um lagarto falante autointitulado Noi Crescent, cavaleiro de uma ordem feral responsável por proteger uma princesa e salvar o mundo de um terrível feiticeiro. 

"Um belo dia eu acordei e havia um lagarto no meu quarto. Eu olhei para ele. Ele olhou para mim. Depois de um momento de silencio... Ele falou" 

Yuuhi Amamia - Cápitulo 1

O objetivo do pequeno réptil é recrutar o jovem para o posto de Cavaleiro de Lagarto, integrante da Ordem os Cavaleiros das Feras, encarregados de impedir o Biscuit Hammer, um martelo gigante criado pelo feiticeiro como uma manifestação do desespero prestes a esmigalhar o planeta Terra e por um fim a humanidade.  

Inicialmente relutante, o protagonista nega o chamado para a aventura até ser salvo de um Boneco de Barro, monstro criado pelo vilão da história, por sua vizinha Samidare Asahina, a reencarnação da Princesa Anima que revela o desejo de salvar o planeta da perdição eminente apenas para destruí-lo com suas próprias mãos. Com essa interação, Amamia é tragado para o centro de uma enorme fábula sobre um martelo gigante a destruição do mundo.      

O Mangá foi trazido oficialmente para o Brasil por meio da editora JBC em 10 volumes entre os anos de 2014 e 2015. Além disso obra recebeu uma adaptação em anime em 2022, que atualmente se encontra disponível com dublagem na Crunchyroll

Sinopse: 

"Yuuhi Amamiya é o improvável protagonista da história, um universitário desinteressado que recebe a missão de ajudar a “princesa” a salvar a Terra. Mas o “cavaleiro” do lagarto terá grandes obstáculos pela frente, sem contar sua própria inabilidade e falta de vontade, com o pequeno detalhe que, caso falhe, o planeta será esmagado por um martelo gigante, cuja sombra se projeta pelos céus"

 Sinopse Oficial JBC

 

Coleção de mangás da obra Lúcifer e o Martelo publicada pela JBC. O vlume um está me pé com a capa a mostra, nela temos dois jovens juntos, um garoto de óculos e jaqueta laranja está curvado com um lagarto em sua cabeça, enquanto uma menina de saia e capa vermelha salta em suas costas
Imagem autoral 

A criança de ontem e o adulto de hoje:

Ao passo que obras como Evangelion atingem o espectador que diz respeito a forma com que nos relacionamos com o outro, Lúcifer e o Martelo dialoga com outra questão fundamental do ser: A forma como nos enxergamos enquanto adultos funcionais. No fim, uma narrativa fantasiosa sobre um martelo que irá destruir a terra não passa de uma escolha de Mizukami para refletir o processo de formação de um jovem adulto e o que o diferencia de uma criança, se é que existe de fato uma distinção. 

Ao todo, não consegui identificar nenhum capítulo que seja totalmente dispensável para a trama, pelo contrário, muitos ganham mais camadas e valor em uma segunda leitura, sendo ela recomendada no posfácio da edição brasileira. Apesar de ser uma serialização longa quando comparada a outros títulos do autor, o total de capítulos ainda é menor do que em outras obras do gênero.  

Para uma história relativamente econômica, o elenco é até que grande, contando com os 12 cavaleiros do anel, e seus respectivos parceiros animais, além da princesa Samidare, o feiticeiro Animos e outros personagens recorrentes. Dessa forma, temos um núcleo de personagens de idades e vivências diversas que só enriquece a temática central do mangá. A quantidade considerável de crianças no grupo dos mocinhos da história e um protagonista que começa extremamente imaturo e vai crescendo, não enquanto fica mais forte mas sim enquanto se permite vivenciar as fragilidades e desalentos da vida, é mais um dos métodos do autor para passar sua mensagem. 

Focando então no que considero o principal ponto do quadrinho, e com isso minhas interpretações pessoais, reitero que apesar da estrutura convencional de "mangá de lutinha" o autor não faz questão de esconder sua mensagem no subtexto, muito pelo contrário escancara sua ideia do que é preciso para tornar-se adulto. Com isso, surge a reflexão: O que é ser adulto? 

A relação adulto/criança é explanada ao longo de todos os capítulos e estabelece, de certa forma, que o conceito de um "adulto" modelo e funcional talvez não exista de fato e que assim como heróis de tokusatsu e paladinos da justiça, os mais velhos nada mais são do que personagens construídas para inspirar os mais novos a crescerem sem medo dos desafios impostos no caminho. 

"Eu vou sorrir... para mostrar para a Sammy e para você.. que ser adulto é muito bom..."

Hisame Asahina - Capítulo 15 


O fundo da capa é branco e o título "Lúcifer e o Martelo" está escrito em amarelo contornado em vermelho. Na arte um jovem de óculos e cabelo curto tem um lagarto no ombro e está segurando uma garota com cabelo amarrado nos braços. Ela está carregando uma miniatura do planeta terra nos braços.
Lúcifer e o Martelo Volume 10


A postura adotada por Amamia no começo da história estabelece um personagem amargurado, cheio de uma noção de superioridade, carregado de clichês sobre a falta de valor da humanidade e a necessidade da solidão como forma de preservação. A cada interação com os mais velhos e a cada suporte prestado aos mais novos essa fachada se quebra, as correntes impostas na infância se afrouxam e o que se ergue dos escombros de um jovem vazio não é um herói cheio de virtudes, mas sim um adulto cheio de bagagens emocionais pronto para tentar modificar um destino aparentemente imutável. 

O autor estabelece um processo de crescimento cumulativo onde as idades não se anulam, mas sim se entrelaçam para a formação de um indivíduo, o adulto de hoje e a criança de hoje são, em suma, a mesma pessoa vista por uma nova ótica. O inicio da maioridade é como subir em um palco sem saber as falas, interpretando uma cena onde o enredo se desenrola diante dos seus olhos e se modifica a cada interação e decisão tomada. Nesse cenário caótico, o único guia são as ações daqueles estão diante dos holofotes a mais tempo que você. 

"Por acaso não sabe? As crianças se tornam adultas após muito imitarem os adultos"

Noi Crescent - Capítulo 32 

Conceitualmente, o martelo de biscuit responsável por destruir o planeta se mostra como uma representação do "desalento", que pode ser visto por qualquer pessoa desde que a mesma se encontre num estado de desesperança elevado ao ponto de desejar o fim do mundo, essa lógica não se limita a personagens adultos como também se extender a crianças, como no caso de Tayo Akane, cavaleiro de coruja (e responsável por uma das cenas mais emocionantes da obra) que enfrenta como dilema a rejeição por parte da família e a tentação por parte do vilão da história. 

A arma de destruição em massa paira sobre os protagonistas como um lembrete de que tudo pode se acabar em um instante, a existência é finita e temos apenas uma chance para fazer a vida valer, o que quer que isso signifique. Entretanto, ao se revelar só para os aflitos, a ferramenta escancara uma das armadilhas da vida: Diante dos problemas e da solidão a falta de perspectiva pode tornar o fim a única saída possível.      

Outro pensamento advindo do martelo está ligado ao seu criador, Ânimos, que faz uso de sua arma de destruição para destruir o planeta azul e como consequência retornar ao passado, repetindo a ação inúmeras vezes na esperança de voltar ao início de tudo. Com isso, o personagem se mostra como alguém que nunca foi capaz de crescer de fato, cedendo a impulsos destrutivos e retornando ao passado, contrariando a temática de crescimento e amadurecimento da história. 

A lógica de destruição do feiticeiro também respinga em Samidare, escolhida para impedir a arma, mas que, em segredo, deseja ela mesma destruir o mundo para estabelecer uma ideia distorcida e melancólica de posse, para a garota, um mundo que seguirá após sua morte por doença terminal nunca foi de fato seu. Dessa forma, se estabelece uma relação curiosa entre destruição e criação com infância e vida adulta. 

Contudo, sua contra parte o "Blue Drive Monster", criado pela personagem Anima como medida de segurança mostra o outro lado da moeda. Se por um lado o desalento rodeia, pelo outro a esperança se torna visível para aqueles que buscam enxergar. Em uma sociedade estruturada no individualismo, encontrar no outro um apoio durante os momentos difíceis é, também, se rebelar contra a desesperança. No fim, o processo de crescimento envolve as inúmeras e continuas trocas que realizamos com nossos semelhantes ao longo dos anos. 

"Durante todo esse tempo, eu estava à espera daqueles que seriam capazes de ver a esperança ao lado do desalento visível"

Anima - Capítulo 53 

Apesar disso, envelhecer não é exatamente um mar de rosas, o caminho quase sempre é incerto e é preciso conviver com o medo da mudança, a sensação de ser deixado para trás enquanto os outros seguem em frente e a angustia de seguir enquanto algo é deixado para trás. No fim, os grilhões que te limitam não se quebram sozinhos, é preciso um salto de fé, impulsionado pela confiança de quem nos cerca, para alcançar voos cada vez mais altos. 

"Foi você quem disse para mim!! Que eu posso voar mais alto do que você" 
      Yuuhi Amamia - Capítulo 62


Fontes: O Texto contou com informações presentes no site da editora responsável pela distribuição da obra oficialmente no Brasil, e da plataforma de streaming Crunchyroll. Além de informações do site Biblioteca Brasileira de mangás.  

Samuel Lima

Escrevo de tudo um pouco aqui na Otadesu, sempre com o objetivo de informar com qualidade. instagram bluesky

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